CONTRIBUTOS CIENTÍFICOS E TECNOLÓGICOS DOS DESCOBRIMENTOS... E OUTROS CONTRIBUTOS TAMBÉM

O universo cultural dos Descobrimentos é composto  por grandes campos temáticos: o da prática e técnica da sabedoria do mar/marinharia; o do contributo para o conhecimento científico; o da antropologia; o da doutrina (ideológica).
Estes quatro campos representam uma adaptação criativa dos saberes tradicionais das culturas europeias clássica e medieval.
Os Descobrimentos constituem uma revolução informativa que nega erros como o da inabitabilidade da zona equatorial e transmite à Europa novidades como a da civilização japonesa.

sabedoria do mar/marinharia compõe-se de conhecimentos objetivos que possibilitam a existência das grandes viagens marítimas dos séculos XV e XVI e que se desenvolvem e sistematizam com essas mesmas viagens.
As obras deste campo consistem em três tipos de documentos: a astronomia náutica; a cartografia e os tratados técnicos de construção naval.

Regime de ventos alíseos no Atlântico
Ao longo das primeiras décadas do século XV, as viagens atlânticas de regresso da Guiné para Portugal deparam com os ventos alíseos e as correntes de norte e nordeste, que dificultam a navegação costeira.
Estes obstáculos ultrapassam-se através da volta pelo largo, começada a praticar com caráter sistemático em meados do século XV; assim, alcançando o mar dos Açores, os navios encontram a noroeste ventos e correntes favoráveis para o regresso a Portugal.

Correntes marítimas do Atlântico

Todo este avanço empírico vai gerar a revolução da náutica astronómica, que é a observação dos astros no mar como medida fundamental para orientar a navegação.
A navegação oceânica astronómica implica o recurso criativo, através da simplificação dos modelos, a vários instrumentos de observação e de medida. Os mais utilizados são o astrolábio e o quadrante náuticos, que dão diretamente a altura angular do astro observado (normalmente o sol), bem como a balestilha e as tavoletas.
Astrolábio
[usoquadr.jpg]
Quadrante
[usobales.jpg]
Balestilha

O anel náutico, o instrumento de sombras, a armila náutica e o semicírculo graduado são outros instrumentos teoricamente propostos.


Armila náutica
Os Guias Náuticos são cadernos de apontamentos, anónimos e coletivos, preparados pelos marinheiros para uma exposição didática das regras, observações e aplicações da náutica astronómica.
Os Livros de Marinharia, fruto coletivo da experiência dos pilotos, são compêndios de princípios normativos e de informações úteis para a navegação.




Os Diários de Navegação (diários de bordo) são obras onde se registam, dia a dia, as observações náuticas feitas pelos pilotos durante uma dada viagem. Apresentam uma ordem descritiva com um grande peso de informação pontual das realidades náutica, geográfica e antropológica.
Os Roteiros são por excelência o lugar onde se encontra a sabedoria do mar/marinharia e apresentam profundas diferenças relativamente aos roteiros típicos da Idade Média (os portulanos).
O Roteiro de Navegação Oceânica, instrumento técnico-prático e obra de investigação da náutica astronómica, caracteriza-se pela utilização de três novos elementos: o aparecimento sistemático e controlado dos valores da latitude; a evolução dos rumos de magnéticos/agulha (rosa dos ventos); grande quantidade de informações sobre os oceanos quanto a regimes de ventos e correntes, fundos..., o que possibilita a constituição dum banco de dados oceanográficos, meteorológicos e hidrográficos, à escala planetária.
Ao longo do século XVI, a sabedoria do mar/marinharia alcança uma dimensão teórico-crítica que ultrapassa os temas e os problemas presentes ao nível técnico-prático.
Graças às obras de Duarte Pacheco Pereira, D. João de Castro, Pedro Nunes e Fernando Oliveira, entre outros, surge um espaço científico que investiga questões simplificadas ou não abordadas no plano prático.
Entre esses exemplos contam-se, por exemplo, questões como a declinação da agulha de marear, a projeção cartográfica, o rigor ou a criação de instrumentos da altura e tábuas de latitude, a teoria das marés e da proporção, no globo, entre a terra e o mar.

Duarte Pacheco Pereira (c. 1460-1533) é autor do Esmeraldo de Situ Orbis, escrito por volta de 1505-1508.
A obra é uma espécie de tratado global de marinharia da segunda fase de navegação astronómica no Atlântico, reproduzindo um dos primeiros regimentos portugueses do Sol e um dos mais antigos roteiros com latitudes. Tem também um grande interesse pelas descrições que faz de costas e de entradas de portos.

Duarte Pacheco Pereira


D. João de Castro (1500-1548), membro da alta nobreza, é uma grande figura científica e filosófica da cultura dos Descobrimentos.
O Tratado da Esfera e os Roteiros representam as faces teórica e prática, respetivamente, da atividade científica de D. João de Castro, centrada nos temas e problemas da astronomia náutica e da cartografia.



Os Roteiros de D. João de Castro são notáveis investigações experienciais que transformam a viagem em laboratório científico e que tratam de problemas como as alturas/latitudes, as distâncias, as entradas, as derrotas, as "mostras e conhecenças", a ordem das marés e a variação magnética da agulha de marear.

Pedro Nunes (1502-1578), um dos grandes matemáticos do Renascimento, é autor de várias obras teóricas sobre a sabedoria do mar/marinharia.



Pedro Nunes, embora não tenha conseguido uma total e harmoniosa correlação entre a teoria astronómica e as necessidades da marinharia, trouxe grandes contributos à astronomia náutica em casos como as linhas de rumo, as pomas rumadas, os métodos de representação cartográfica, o instrumento de sombras e o nónio.


A sua obra mais conceituada é o Tratado da Sphera (...).

A cartografia é a ciência da representação plana, parcial ou total, da Terra, segundo uma escala numericamente definida e determinadas convenções.
A cartografia portuguesa dos Descobrimentos, embora herdeira da cartografia náutica medieval do Mediterrâneo, com a chamada carta-portulano, apresenta, para além da imensa informação, algumas inovações e certos desenvolvimentos nas técnicas de representação.

Planisfério de Cantino (1502) - Biblioteca Estense, Modena

A grande importância da carta de rumos dá-se através de quatro elementos: a introdução da escala de latitudes; os planos hidrográficos; a fictícia graduação de longitudes; o registo de sondas.

As grandes viagens marítimas dos portugueses implicam todo um desenvolvimento tecnológico e prático no domínio da construção de caravelas, naus e galeões.
Ao longo do século XV dominam as caravelas de dois mastros latinos com cerca de quinze metros de quilha e cinquenta e sete toneladas.

Caravela equipada com vela latina

A nau da Carreira da Índia é um navio com três mastros, dois redondos e um latino, de cerca de vinte a setenta metros de quilha e com uma média de quinhentas a setecentas toneladas.


A nau

O galeão é um navio de quatro mastros, de alto bordo, armado em guerra, frequentemente utilizado no transporte de cargas de alto valor na navegação oceânica entre os séculos XVI e XVIII. Alguns chegavam às mil e duzentas toneladas e quarenta bocas de fogo.

Galeão
 O Padre Fernando Oliveira é o grande teórico da construção naval e, ao mesmo tempo, o único enciclopedista da marinharia dos Descobrimentos.


O conhecimento da botânica e da farmacopeia orientais passa por três grandes fases.
Na primeira assiste-se a uma mera recolha empírica de informações, com os Roles de Drogas da Índia de Tomé Pires (1516) e de Simão Álvares (1547).
A segunda fase apresenta o tratamento erudito e humanista das informações e dos produtos chegados à Europa, como se vê na obra de Amato Lusitano (1511-1568).

Curationum medicinalium centuriae.
Centúrias

A última fase realiza o encontro destas duas atitudes. Trata-se, então, de no próprio Oriente, com a experiência concreta da botânica e da medicina, produzir obras de informação e de reflexão crítica e erudita, como os Colóquios de Garcia de Orta e o Tratado de Cristóvão da Costa.

Frontispício de "Colóquio dos Simples e Drogas da Índia"
Colóquios dos Simples e das Drogas da Índia - Garcia de Orta

As informações sobre a mineralogia, a zoologia e a botânica da África e do Brasil surgem, regra geral, duma forma pontual e descritiva.
Em relação ao Brasil, estes conhecimentos tomam uma dimensão mais sistemática e profunda graças aos cento e doze capítulos que Gabriel Soares de Sousa dedica ao assunto no Tratado Descritivo do Brasil (1587) bem como à História dos Animais e Árvores do Maranhão escrita por Frei Cristóvão de Lisboa entre 1624 e 1627.



Os Descobrimentos fundam, no plano antropológico, o conceito objetivo de Humanidade ao desvendarem a regularidade física na pluralidade espiritual de todos os homens.
A antropologia dos Descobrimentos produz dicionários civilizacionais, essencialmente descritivos, que levam à criação de um código interpretativo do Outro. 
Estas obras apresentam informações profundas sobre diferentes áreas civilizacionais em África (Marrocos, Guiné/Cabo Verde, Congo/Angola, Monomotapa/Moçambique, Etiópia), na Ásia (Próximo Oriente/Terra Santa, Ormuz/Pérsia, Índia, Ceilão, Pegu/Insulíndia, China, Japão) e na América (Brasil, Argentina, Florida).
A antropologia da cultura dos Descobrimentos encontra-se em quatro grandes tipos de documentos: as cartas e relatórios informativos ligados à situação local do Estado e da Igreja; as sistemáticas descritivas do homem e da natureza africana, asiática, ameríndia; os relatos de viagens terrestres e marítimas; as memórias vivenciais (orais) dos mundos, passadas por outros à escrita e dessa forma divulgadas.
Estas obras são fruto de uma experiência vivencial que assenta nos princípios da prova e da verdade, no ver e no ouvir. Assentam nas analogias, tentando aproximar o desconhecido do conhecido, e em hierarquias.

A maior parte dos habitantes anda nua e apenas alguns vestem panos de algodão. O animismo e o islamismo são as características religiosas mais assinaladas, bem como a predominante poligamia e a pontual antropofagia.Os africanos da costa da Guiné/Serra Leoa surgem, aos olhos dos portugueses, organizados em múltiplos reinos e tribos que possuem entre si redes de relação e de dominação política e económica, exercendo o resgate de escravos.
Os africanos da zona do reino do Congo são apresentados como povos de costumes animistas, poligâmicos e esclavagistas. Nesta região existem tribos nómadas e outras sedentárias.
Os habitantes do reino do Monomotapa e da costa oriental de África até Melinde são designados por cafres.
As características mais referidas são a cor negra, baça ou parda da pele e o facto de tanto os homens como as mulheres andarem de tronco nu e cobrirem as suas "vergonhas" (órgãos sexuais) com panos de algodão pintado. As mulheres depois de casadas passam a cobrir o peito, e tanto os homens como as mulheres enrolam os cabelos em forma de fuso.
O reino do Preste João (Etiópia) surge como um espaço abastado e organizado, com variedade de carnes, manteiga, mel e pão de trigo.
Os etíopes são apresentados como cristãos ligados à doutrina e prática do tempo de São Tomé, daí que uma das suas formas de batismo seja a marca ferrada na testa.
Os fartaques habitam a costa da Arábia. O homens são, na sua maioria, bons guerreiros e têm o costume de jamais cortar o cabelo e a barba, o que lhes dá um ar aterrador.
Os persas do reino de Ormuz, tanto os homens como as mulheres, são descritos como gente branca muito alva e formosa que se veste com roupas compridas de algodão e seda. Os ricos gostam de ostentar a sua condição tanto no vestuário como na alimentação.
A Índia é um espaço de inúmeros reinos. O sistema de castas é apresentado como uma diferença de leis, costumes e idolatrias e marca uma separação radical entre os indianos. Há uma hierarquia absoluta entre os homens das diferentes castas, os quais, nas palavras de Duarte Barbosa, não se tocam uns aos outros sob pena de morte.
Os homens malaios são descritos como gentios de belos corpos. Andam nus da cintura para cima e cobrem o resto com panos de algodão. Os mais nobres usam coletes de seda ou brocadilho. Andam descalços e cortam o cabelo ao modo de coroa de frade.
Os chineses surgem, aos olhos dos portugueses, como o exemplo de uma sociedade desenvolvida e organizada.
Os homens e as mulheres têm formosos corpos e uns olhos muito pequenos. Os homens usam uns pelinhos em vez de barba. O vestuário, que consiste em panos de algodão, seda e lã, é bom e variado.
A diferença nas formas de estar à mesa leva Duarte Barbosa a notar que não tocam nos alimentos com as mãos, pois chegam muito o prato à boca e introduzem a comida com umas tenazes de prata ou de madeira..

Hasekura em rome.jpg
Samurai do século XVII
Os habitantes do Japão são, logo em meados do século XVI, apresentados como muito rijos para o trabalho. 
Os japoneses são monogâmicos, embora os honrados e ricos possuam várias mulheres. Estas são vistas como muito limpas, brancas e meigas. Todos mostram uma grande devoção pelos seus ídolos religiosos.
Mulher tupi
A cultura e a sociedade dos tupis caracterizam-se por uma total adaptação ao mundo da floresta tropical.
O ameríndio do Brasil é um nómada com uma organização social assente na tribo, na propriedade comunitária, na poligamia e na antropofagia como ritual de guerra. Dedica-se à pesca e à caça, bem como a uma agricultura rudimentar de cultivo da mandioca, do milho, do algodão e do tabaco. A sua tecnologia vive da pedra, da madeira e do osso.


Ao longo dos séculos XV e XVI, Portugal, através da aventura planetária dos Descobrimentos, constrói toda uma ideologia doutrinária de explicação e valorização da dispersão no mundo.
Este universo de ideias apresenta uma faceta espiritual e de missão civilizacional dos Descobrimentos, ao mesmo tempo que discute o valor, positivo ou negativo, das novas realidades materiais e comportamentais.



A imagem doutrinária dos portugueses, no plano internacional, alimenta a ideia contraditória de um Portugal ao mesmo tempo europeu e único.
A dimensão europeia e cristã é proclamada nas relações com africanos, asiáticos e ameríndios. Trata-se de destacar a superioridade política, económica, religiosa e tecnológica da Europa no mundo.
A dimensão única nasce da comparação com a restante Europa. A ideologia oficial destaca o fator de absoluta e única fidelidade de Portugal ao ideal cristão de guerra justa contra o infiel islâmico. A restante Europa é desenhada como divisão e hesitação religiosas, representando Portugal a pureza da Cruzada.
A ideologia em torno do sentido e do valor dos Descobrimentos surge, na maioria dos casos, dispersa no interior de obras centradas em outros temas; ela é frequente no teatro, na poesia, no misticismo, em panegíricos e na epistolografia de Quinhentos. Existe, contudo, um outro tipo de obras que, por si só, são autênticas teses de valoração dos Descobrimentos.

Luís de Camões

Na forma literária, as maiores são os Lusíadas, de Luís de Camões (1572), e a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, publicada em 1614.

Peregrinação
O discurso histórico, em especial o humanista, constrói toda uma doutrina ao redor dos Descobrimentos.

Crónica de D. Manuel de Damião de Góis
A religiosidade do Outro civilizacional é pensada em duas grandes categorias: frente ao Islão encontra-se uma ideia de radical oposição. O islamismo é o antimundo do cristão. O mouro surge como o grande oposto concorrencial a combater.

João de Barros, autor das Décadas da Ásia
Pelo contrário, as religiões animistas da África e do Brasil, o hinduísmo e o budismo surgem como formas sagradas da gentilidade, espaços neutros possíveis de serem apropriados pela religião cristã. A religiosidade dos gentios é sempre encarada em termos de explicação e de aproximação ao cristianismo.
Os valores da guerra desempenham um papel fundamental na doutrina oficial dos Descobrimentos. O herói militar, ao serviço do rei e de Deus, é uma das figuras chave da ideologia.

Conquista de Ceuta
NOTASPanegíricos - Discursos em louvor de alguém (que elogiam, que enaltecem);
Epistolografia - Cartas, missivas.



Comentários

Mensagens populares